quarta-feira, abril 12, 2006

Paradoxo:


Para serem vendidos na Europa, os brinquedos e outros bens destinados a crianças (mas não só) tem que obedecer a um rigoroso conjunto de regulamentos e normas que garantam, tendencialmente, que os mesmos não provoquem qualquer risco aos seus utilizadores (as nossas crianças).

Tem ainda que cumprir com outro rigoroso conjunto de regulamentos e normas que garantam que os mesmos não afectem o meio ambiente ou que esse impacto, se inevitável, seja mínimo.

No entanto…

Não existe qualquer norma ou regulamento que imponha qualquer restrição às condições de trabalho em que os mesmos são produzidos, armazenados, embalados e distribuídos, que garanta sequer um conjunto mínimo de condições de segurança e higiene no trabalho, de saúde, de dignidade, etc. etc. etc.

Isto facilita, naturalmente, que uma grande parte dos bens comercializados no mercado europeu, sejam produzidos em “mercados emergentes” com recurso intensivo a mão-de-obra infantil, extremamente mal paga e a trabalhar em condições equiparáveis à escravatura.

Todos conhecemos esta realidade e, apesar disso, quase todos somos capazes de dormir noite após noite repousados e de consciência tranquila, porque nos fizeram acreditar que isto era uma inevitabilidade contra a qual de nada valia a nossa oposição.
Porque foram até capazes de fazer muitos acreditar que isto era normal, que isto era justo e, em última análise, até benéfico.

Para a propagação desta falácia, em que até muitos dos que, seriamente, se identificam com a “esquerda” e até militam em partidos com o singular nome de “socialista”, por exemplo, acreditam, colabora a mais vasta gama de personalidades, pelo que, a certo ponto, se torna quase impossível distinguir entre os genuinamente cínicos e os apenas ingenuamente iludidos.

Naturalmente ninguém, muito menos os incondicionais defensores das miríficas virtudes dum mercado idealizado, está preocupado com a flagrante violação das mais básicas regras de concorrência, que representa o permitir que concorram, num mesmo mercado, bens de produtores sujeitos a obrigações tão díspares sobre os factores que afectam tão significativamente os seus custos de produção.

Como não são capazes de ver para além do seu nariz (ou seja, no máximo, outra geração) parecem não se aperceber que o acesso, por parte das nossas economias, a bens com um preço muito abaixo do seu custo de produção (no nosso mercado) apenas poderá gerar o fim da produção de bens, ou seja de riqueza, por parte do nosso mercado e, a prazo, ao esgotamento dos meios que permitam a sua aquisição aos mercados que os produzem.

Que os factores que permitem o sucesso dessas economias são exactamente aqueles contra os quais lutaram as gerações que nos precederam e que permitiram contribuir para o desenvolvimento desta nossa civilização que tem por objectivo primeiro a garantia das condições de sobrevivência, com dignidade, a todos os seus membros e da igualdade de oportunidades na busca da felicidade?

Que se a nossa geração abdica destes objectivos estará a condenar as gerações que nos seguem a um destino semelhante ao daqueles em cuja miséria agora assentamos o nosso bem-estar.

Que ao garantir o sucesso dessas economias, baseado nestes factores, estamos a contribuir para a perpetuação desses factores nessas economias e a sua replicação pelas que com elas pretendam competir.

Que o caminho certo passa pela imposição de normas e regulamentos que, para além de proteger os (nossos) consumidores e o meio ambiente, permitam também a garantia de condições equivalentes (no que respeita aos factores produtivos, nomeadamente o factor trabalho) às impostas às empresas produtoras sedeadas nas economias onde os bens serão comercializados.

Que só essas medidas permitirão o funcionamento do mercado em condições de concorrência efectiva.

Que só essas medidas permitirão a manutenção do emprego, da criação de riqueza e, a prazo, da qualidade de vida, na nossa sociedade.

Que só essas medidas permitirão o incentivo necessário à melhoria das condições de trabalho e, a prazo, da qualidade de vida, nas sociedades cuja produção assenta, actualmente, na exploração da miséria das populações, na cegueira pavloviana dos consumidores ocidentais e na gananciodependência dos “junkies” do capital.

Que a continuação cega neste rumo significa apenas e inevitavelmente o suicídio da civilização tal como, um dia, a sonhamos.

António Moreira

7 comentários:

maloud disse...

Nós não só dormimos descansados, como colaboramos. Nós corremos a comprar o electrodoméstico barato, o sapato feito no Paquistão, a roupa feita na China e por aí fora.
A Europa não comprava o textil e o sapato fabricados com a mão de obra infantil portuguesa?
Quando a Moulinex {para quem desconheça, especialista do pequeno electrodoméstico barato e fiável} fechou, em França houve um grande sobressalto. O patrão da Moulinex, que não era um mafioso, só disse de forma amarga: Foram os franceses que levaram a fábrica à falência preferindo marcas vindas desse Oriente, onde as pessoas são escravizadas. Para pouparem meia dúzia de francos, ainda não havia euro, atiram toda esta gente para o desemprego. Fiz todas as reestruturações possíveis, mas já não dá para aguentar mais. Teria de deixar de pagar os salários.

AM disse...

Cara Maloud

Obrigado pelo seu comentário.

Esperei alguns dias para ter a certeza, mas, tirando o seu, este meu "post" não mereceu mais qualquer comentário.

Haverá decerto outros assuntos aos quais as pessoas dedicam mais atenção...

Obrigado a si.

AM

maloud disse...

AM
Penso que na Páscoa, a maoir parte das pessoas dá à sola {eu dei}. Talvez seja por isso, porque o assunto é extremamente importante, embora não confortável, porque todos somos cúmplices.

Fernando Rola disse...

mea culpa (excelente post)

AM disse...

Meus caros

Este "post" com o qual pretendi aproveitar e aprofundar o debate da caixa de coméntários do meu "post" MERCI, trata de um dos dois grandes temas cujo debate sinto ser fundamental, o sistema económico europeu inserido no s.e. global (o outro tem a ver com a organização política e o sistema democrático (aqui sem «»)).

É evidente que as posições que defendo são absolutamente contrárias às posições ditas "liberais" que actualmente estão na moda e cuja falaciosa "lógica" consegue até enganar muitos que, genuinamente, se consideram socialistas.

Penso que se este (e o outro) tema não merecem debate, neste "blog", algo está muito errado....

Obrigado a quem comentou.
AM

""#$ disse...

"Não existe qualquer norma ou regulamento que imponha qualquer restrição às condições de trabalho em que os mesmos são produzidos, armazenados, embalados e distribuídos, que garanta sequer um conjunto mínimo de condições de segurança e higiene no trabalho, de saúde, de dignidade, etc. etc. etc."

Caro Am; não acha que a mesma caneta de esquerda que assinou desregulamentações alfandegárias é a mesma caneta de esquerda que agora é neoliberal jurandoa todos os seus deuses que ainda é socialista?

Onde estava a esquerda europeia nesta altura? E a portuguesa?

AM disse...

Caro Pedro Silva

Sempre tive grande dificuldade em arrumar ideias ou pessoas em conceitos redutores como (neste caso) esquerda e direita.
E, se o coração sempre me puxa para a esquerda, a razão está sempre atenta a lembrar-me que isso é acção do coração e que isso de esquerda e direita mais não é que uma invenção dos mais espertalhaços para criar em nós uma "clubite aguda" que nos impeça de analisar as situações pelas suas características específicas, sendo mais fácil fazer-nos alinhar pelas "posições da esquerda" ou "da direita" consoante a nossa "fé".

Penso que a análise desta realidade tem a ver com dois conceitos muito simples "decência" e "sobrevivência" e se, para alguns, a "decência" devia ser suficiente para ditar a sua actuação, para aqueles a quem este conceito nada diga (ou seja, a maioria dos decisores políticos, digam-se eles da esquerda ou da direita) a razão devia servir para ditar o seu comportamento em termos desse conceito básico da "sobrevivência".
Infelizmente a sua inteligência não é mais desenvolvida do que a daqueles animais que não podem parar de comer até rebentar, pelo que não será de esperar que a nossa civilização venha a ter melhor destino....

AM